Quase dez anos após a morte do seu único filho, que perdeu a vida num trágico acidente numa piscina, Judite Sousa, de 62 anos, consegue contar como é que viveu essa fase e as que se seguiram. A jornalista vai lançar no dia 23 de janeiro a obra Pedaços de Vida, da editora Arena, onde revela como é que as várias experiências lhe moldaram a personalidade, desde a infância até aos dias de hoje.
Judite Sousa foi perfilhada aos 11 anos
Judite Sousa recorda a infância sofrida, em que cresceu só com a mãe e com a avó, sentindo‑se muitas vezes discriminada por ser filha de pai incógnito. Só quando tinha 11 anos é que o progenitor a perfilhou.
A jornalista conta que se habituou a viver na solidão e com a solidão, recordando como era o seu dia‑a‑dia: “Em criança, sem irmãos, ia para as aulas, sempre de manhã, e, no regresso a casa, tinha a companhia da minha avó materna, a minha avó Susana. Ela deu‑me colo e a ternura possível para uma mulher com quem a vida também não foi generosa.” No entanto à hora do almoço, preparava‑he a sua refeição preferida: “arroz de tomate com linguadinhos fritos.
Era com a minha avó que eu falava, mas não muito. Bastavam‑nos os afetos. Ela dizia: ‘A minha menina’ e eu sabia que era a menina dos seus olhos tristes.” Depois do almoço, dedicava‑se aos estudos numa sala, de uma casa de pequenas dimensões, e ali permanecia toda à tarde. Às vezes, dava explicações aos vizinhos que lhe pediam ajuda. Só ao final do dia é que ia brincar com os amigos até à hora de a mãe e os tios regressarem das fábricas.
A noite da tragédia
Talvez a parte mais difícil de contar foi a que mudou a sua vida para sempre. Na noite de 27 de junho, Judite Sousa foi convidada para uma festa de aniversário em Cascais. Depois, um pequeno grupo, onde ela se incluía, decidiu ir até ao Tamariz. “Deviam ser umas três horas, quando me comecei a sentir muito inquieta. Fiquei angustiada, de repente. Não conseguia explicar o que estava a sentir. Decidi que teria de voltar para casa.” Na altura, vivia sozinha em Lisboa, na zona do Chiado, e o filho já era independente. Tinha 29 anos e uma vida profissional estável.
Pouco tempo depois de regressar a casa, o telefone tocou. Era um amigo de André. “Para ser o Manuel a ligar -me era porque algo de grave estava a acontecer. Em poucas palavras, disse -me que o André tinha tido um acidente e que estava no Hospital São Bernardo, em Setúbal.” Judite Sousa conta que Manuel estava com uma voz “calma, mas estranha”, o que a levou a pensar que “o meu filho poderia já não estar vivo. Nós, pais, sentimos tudo o que se passa com os nossos filhos. Dizem que é uma questão de sexto sentido. Para mim, é uma questão de sangue; do nosso sangue”. Em seguida, o amigo do filho e a mulher foram buscar Judite a casa e acompanharam -na ao hospital de Setúbal.
“Dirigimo-nos à entrada do hospital e lembro -me de que eu gritava muito e dizia: ‘Eu quero ver o meu filho!’ Segundos depois, apareceu um jovem médico, dos seus trinta e poucos anos, e disse -me: ‘A senhora vai ver o seu filho…, mas o seu filho não tem sinais neurológicos.’ A minha vida acabou naquele exato momento. Aquele médico estava a dizer-me que o meu filho estava em morte cerebral”, recorda. O jovem ainda foi transferido para o Hospital Garcia de Horta, em Almada. Foram realizados exames neurológicos mais específicos, “numa vã esperança de que as lesões do meu filho fossem recuperáveis. Não eram”, explica a jornalista.
A última conversa com André
A necessidade de falar sobre a perda do filho leva-a a recordar a última conversa que teve com André, no dia 25 de junho de 2014. “Deviam ser umas 16 horas quando o André me telefonou. Disse-me: “Mãe, acabei de comprar o fato que vou levar ao casamento do Francisco”, afirma a ex-pivô da TVI, revelando ainda que, após terem trocado algumas palavras, se despediram com um beijinho.
Fases de luto
Na obra, a autora fala das várias fases do luto e conta como é que as viveu. “Na morte de um filho, forma-se um sentimento de culpa muito complexo”, começa por dizer e conta como é que ultrapassou cada uma delas:
❯ Fase do choque: Assim que se recebe a notícia da tragédia, fica-se atordoado, sem conseguir acreditar que aquilo realmente aconteceu. “Foi o que aconteceu comigo durante muito tempo. Mantinha-me prisioneira da ilusão de que o meu filho estaria ausente, de viagem, mas que iria voltar um dia.”
❯ Fase da negação: Não é mais do que uma defesa psicológica que a mente cria, “como que querendo dizer a nós próprios: não pode ser verdade”.
❯ Fase da revolta: É nesta altura que se começa a sentir raiva e a questionar porque é que a tragédia caiu sobre nós. Pergunta-se muitas vezes de quem é a culpa. “Durante muitos meses, perguntei frequentemente a alguns amigos do meu filho em que é que eu poderia ter falhado. Eles diziam-me, pacientemente: ‘Foi um acidente…’ É muito difícil interiorizar a realidade.”
❯ Fase da negociação: Nesta altura já se consegue fazer perguntas e obter algumas respostas. “É uma fase do luto que normalmente exige o acompanhamento de um médico. É um diálogo que precisa de ser feito com a mediação de um técnico de saúde”, esclarece. Se esta fase falha, surge a da depressão.
❯ Fase da depressão: Pressupõe um estado de tristeza profundo, em que não apetece fazer nada. “Para mim, é um estado de tristeza permanente, contínuo. Sair da cama parece impossível, sendo neste estado que surge a ideia da morte, da desistência”, revela. Por fim, se se consegue começar a ultrapassar a depressão, surge a última fase, a da aceitação.
❯ Fase da aceitação: Nesta fase aceita-se que nada se pode fazer para ter aquela pessoa de volta. “É uma espécie de rendição. Dizemos a nós próprios: ‘Não há nada que eu possa fazer.’ E a partir deste momento, dizem os médicos, há que saber viver com a realidade, na medida do possível.”
A Solidão de Judite Sousa
Não foi só durante a infância que a autora viveu na solidão. Após a morte do filho, esse sentimento aumentou consideravelmente. “Quando o André partiu, aí sim, vivenciei de uma forma brutal a solidão. Fiquei só porque perdi o meu filho.” Contudo, também muitas pessoas que lhe eram próximas afastaram- -se. “Nos anos que se seguiram à morte do meu filho deixei de ter ao meu lado, nem que fosse à distância, pessoas que tinham um lugar importante nas minhas memórias. Umas afastaram-se, mas tenho de reconhecer que também me afastei de outras e fi-lo para me proteger psicologicamente”, esclarece.
Os retiros
Numa tentativa de perceber e aceitar a morte do filho, a jornalista pediu ajuda a ao padre Tolentino Mendonça. “Ouviu-me durante horas. Disse-me que o meu filho estava vivo, mas numa outra dimensão. Explicou-me com palavras simples o sentido teológico da morte, assim como do nascimento.” Algum tempo antes da pandemia, a autora recebeu uma mensagem do cardeal Tolentino Mendonça, que entretanto já estava a viver em Roma, e falou-lhe dos retiros. “Falou-me num encontro anual que se realizava na cidade italiana de Arezzo, com pais cujos filhos tinham morrido.
Disse-me que eu poderia ficar no Monastero delle Camaldolesi e assistir às sessões espirituais. Foi o que aconteceu” naquele ano, e este ano repetiu-se. “Ouvi as experiências de cada um, chorámos uns ao lado dos outros. Ali, não houve lugar à hipocrisia, à história da coitadinha que está sempre a falar na morte do filho. Ali estivemos, durante dois dias, a recordar os nossos filhos.
Processo de Desistência
Com problemas de autoestima “profundos”, como a própria admite, Judite Sousa diz que os tentou compensar, ao longo dos anos, “na minha vida profissional!” No entanto, revela que com a morte de André, “e incapaz de saber viver com o luto patológico, esses problemas tornaram-se ainda mais profundos.
Ao sentir que as minhas resistências tinham acabado, e com um ambiente crescentemente hostil à minha volta, entrei num processo de desistência lenta de mim própria. Bater no fundo em termos de autoestima é convencermo-nos de que ninguém gosta de nós. E quando essa convicção se forma, então o passo seguinte é também nós deixarmos de gostar de nós próprios“. A autora conta que chegou a sentir repulsa por aquilo que era. “Pensamos: ‘Se eu não gosto de mim e se ninguém gosta de mim, então eu não valho nada. E se assim é, então o que é que eu estou aqui a fazer?’ Desistir é o caminho óbvio. Afigura-se como a única saída.”
Texto: Carla Vidal Dias; Fotos: Arquivo Impala e Instagram
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Judite Sousa fez uma publicação emocionante no seu Instagram. A jornalista partilhou uma carta escrita pelo falecido filho quando tinha apenas nove anos. (…continue a ler aqui)
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