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Testemunho de um cuidador de doente de Alzheimer: «Há momentos que o desespero toma conta de nós»

6 Novembro, 2018

Há mais de meio século, Graciete aceitou Rui como seu marido, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E quando a doença de Alzheimer o arrastou para uma cama, ela tornou-se a sua cuidadora.

A propósito do dia do cuidador, celebrado a 5 de novembro, e enquanto se discute estatudo ou não do cuidador, a Maria falou com Graciete. Uma mulher que deixou de viver a sua vida para viver em prol do marido. Um testemunho arrepiante e que mostra o que muitos cuidadores passam 24 horas por dia.

«Já faz oito anos que deixei o meu trabalho para cuidar do meu marido com Alzheimer. Na altura, ele adoeceu com uma pneumonia e o seu estado de saúde debilitou-se muito. Como consequência, ele não ficou em condições de ficar sozinho. Tive muita pena de deixar o meu trabalho, mas a prioridade era ele. Embora desde o início da doença dele (há 18 anos) a médica me tivesse sensibilizado para o que era cuidar de um doente destes e estivesse muito elucidada sobre o que era cuidar de alguém assim, não tem sido fácil», começa por nos contar Graciete, de 69 anos. Apesar de toda a dedicação, enaltecida pelas duas filhas do casal e dos netos, nem sempre é fácil suportar tanto altruísmo e há momentos em que o desespero toma conta da razão.

«Quando me apercebi dos verdadeiros problemas da doença dele, confesso que reagi mal. Houve até uma vez que me deu um ataque de fúria e parti a loiça toda. Estava enervada. Tinha a minha vida virada do avesso… Depois, fui-me acalmando. Falei com o meu médico de família e ele acabou por me medicar. Assim tenho vivido estes últimos anos. A realidade é que eu não tenho vida. Vivo só para ele», continua.

Amar até ao fim

Graciete faz parte de uma geração de mulheres que honram os compromissos até ao fim, mesmo que tenham de se colocar em segundo plano na listas das suas prioridades. “A situação revolta-me, mas o amor, o carinho e os nossos 52 anos de vida em comum suportam tudo. Tudo isso fala mais alto. Apesar de todas as dificuldades, sou incapaz de o colocar num lar, até porque tenho experiências familiares que não ajudam a isso. O meu pai só viveu nove meses após ter ido para um lar. Desde essa altura que jurei a mim mesma nunca colocar ninguém num lar. Isso só acontecerá se algum dia eu ficar mesmo doente, porque, aí, deixo de ter alguém que cuide dele a tempo inteiro como eu”, salienta a cuidadora.

O dia-a-dia

«Todos os dias me levanto às sete da manhã», desabafa Graciete. Depois, as rotinas: «Mudo-lhe a fralda, limpo-o, dou-lhe o pequeno-almoço, a medicação… Após isto, deixo-o na caminha e ele dorme. O único bocadinho que tenho é quando vou uma hora ao café, enquanto ele fica a descansar. Entretanto, por volta das 10 horas, chega o apoio domiciliário e são estas duas pessoas que lhe dão banho diariamente. Tenho de ter ajuda, porque sozinha é muito difícil… Depois, sentamo-lo na cadeira. Dou-lhe a seguir um pedacinho de fruta ou um iogurte e ao meio-dia o almoço. Depois, vai para a caminha outra vez. Mudo-lhe a fralda e, enquanto ele repousa, também descanso um bocadinho.

Por volta das 16 horas, volto a prestar-lhe os cuidados higiénicos e dou-lhe o lanche, às 19 dou-lhe o jantar… Todos os dias o ritual é o mesmo.  Fisicamente não é fácil. Por exemplo, no banho, ele agarra-se ao meu pescoço e, por isso, fico com muitas dores. O mesmo acontece meiguinho, mas tem muita força. Nisto tudo a única coisa que faço para mim é a horinha que vou ao café e uma horinha que faço de caminhada, à tarde, com as minhas amigas, depois de o deitar. Estes dois momentos valem-me de muito, pois é a única altura do dia em que posso falar e desabafar, porque fora isso só falo com as minhas filhas, que estão comigo à hora de almoço. Ele não fala; ainda ri, olha para mim e sorri. O meu amor por ele é retribuído quando vejo que ele é feliz, porque ele está sempre a rir… E mais, mesmo quando tenho ajuda com ele, acabam por me chamar, porque os olhos dele andam sempre à minha procura e isso é sinal de amor. Deus há de compensar-me…»

O que diz a especialista

Elisabete Mechas é psicóloga e não esconde a importância de ter um cuidador na vida de alguém, sobretudo quando existem laços familiares entre doente e cuidador. No entanto, a especialista garante que a pessoa cuidadora tem de encontrar sempre espaço para si mesma diariamente, caso contrário, corre sérios riscos do foro psicológico.

«É importante perceber que a pessoa cuidadora tem um trabalho, muitas vezes, esgotante psicológica e fisicamente. Por isso, para que esta pessoa mantenha alguma sanidade mental, é necessário que o cuidador retire todos os dias o tempo que achar necessário para si e para viver uma realidade que não a da pessoa doente que acompanha. Caso contrário, essa pessoa deixa de saber viver em função de si e um dia, quando o doente partir, terá dificuldades de viver, uma vez que uma parte de si deixa de existir», explica Elisabete Mechas.

Texto: Revista Maria

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